GOLPISTAS RETOMAM PROJETO DE PRIVATIZAÇÃO DO ENSINO
Autor: Sandro Ari Andrade de Miranda,
advogado, mestre em Ciências Sociais
Ao anunciar a criação de uma unidade administrativa para trabalhar exclusivamente as privatizações, além da informação de agregação do físico e economista Samuel Abreu Pessoa à sua equipe técnica, como potencial Ministro da Educação em caso de vitória do golpe no Parlamento, Michel Temer (PMDB/SP), recolou a privatização do ensino público e da restrição das políticas de financiamento universitário na agenda política.
Seguindo a velha tradição do “complexo de vira-lata” da elite conservadora brasileira, Temer, Cunha, Aécio, Serra e Pessoa são políticos que tentam retomar um desenho de sociedade dividida em castas, um capitalismo às avessas e senhorial, onde uma pequena parcela da população vive na opulência e se sustenta na orgia do mercado financeiro, enquanto o restante da população, inclusive servidores públicos, sofre com arrocho salarial e distantes dos mais comezinhos serviços públicos e bens de consumo.
O projeto desenhado por Temer e seus seguidores na sua “ponte para o passado” retoma conceitos ultrapassados, de subserviência econômica e política do país às grandes potencias econômicas, quebra com a espinha dorsal de resistência dos BRICS, e somente encontra respaldo na absoluta alienação de determinados grupos cooptados pela hiper-realidade midiática, ou no preconceito dos elitistas que preferem passar fome a ver um operário Presidente da República.
Como qualquer estudante universitário da década de noventa, passei boa parte da minha vida acadêmica sob a ameaça constante de privatização do ensino público, da cobrança de mensalidades e, consequentemente, da exclusão de milhares de alunos filhos da classe trabalhadora, dentre os quais sempre estive incluído.
Foram muitas mobilizações, protestos e lutas coletivas para evitar que o sonho da mudança de vida se transformasse numa decepção, dentro da espiral de exclusão social criada no Governo de Fernando Henrique Cardoso e seu séquito neoliberal, que agiam como fantoches do FMI.
Assim como as gerações predecessoras, os estudantes universitários da década de noventa tinham um medo real de perder o espaço duramente conquistado no ensino público por um ato de império do governo tucano.
Qualquer dificuldade hoje enfrentada pela geração universitária criada sob a regência dos governos petistas não tem comparação com as dificuldades das gerações predecessoras. Não havia redução de bolsas de pesquisa porque estas não existiam. Os programas de pós-graduação strictu sensu nacionais eram escassos, e qualquer ação de intercâmbio só ocorria quando havia fomento de agências internacionais. Para piorar, antes do Governo Lula (PT), as últimas universidades federais haviam sido criadas na década de sessenta do século XX.
As universidades federais viviam permanentemente mendigando recursos tornados escassos, dado o esforço do governo do PSDB para desqualificar a imagem de excelência do ensino superior público. Felizmente a eleição de Lula derrubou esta ameaça, e aqueles que me sucederam no ensino público nunca sofreram qualquer risco de cobrança de mensalidades ou outras taxas para poderem exercer o direito fundamental de estudar.
Se nos 08 anos de mandato Fernando Henrique Cardoso (PSDB/SP) não foi criada qualquer nova instituição de ensino superior, apenas nos 12 anos primeiros de gestão petista, entre Lula e Dilma, foram criadas 18 Instituições Federais de Ensino Superior – IFES. Exatamente 45% do quantitativo existente nos 500 anos que antecederam FHC.
Dilma e Lula também proporcionaram o ingresso de milhões de estudantes no ensino superior através do pagamento de bolsas em instituições privadas por meio do PROUNI, coisa que somente um comprometimento efetivo com a inversão de prioridades pode sustentar.
O PROUNI, que é fruto de uma reivindicação histórica da União Nacional dos Estudantes, atendeu, desde a sua criação até o processo seletivo do segundo semestre de 2013, mais de 1,2 milhão de estudantes. Destes, 69% foram beneficiários de bolsas integrais conforme dados oficiais do Ministério da Educação.
Esta relação com o PROUNI é importante porque traz um segundo elemento importante para a discussão que é o custo do ensino superior. Não é fácil construir uma universidade pública, razão pela qual o governo optou por aproveitar os equipamentos hoje existentes no setor privado, fortalecendo também este segmento que viveu uma gigantesca escassez de recursos durante os anos de gestão neoliberal de FHC.
Várias instituições privadas, especialmente as universidades confessionais, quase foram à bancarrota durante a década de noventa, na medida em que o FIES, que substituiu o programa de “crédito educativo” da década de oitenta não tinha crédito subsidiado e tomava por referência os juros praticados pelo mercado financeiro. Não podemos esquecer que a taxa básica de juros SELIC chegou a 45% em 1999, na passagem de Armínio Fraga (PSDB/SP) na administração do Banco Central, índice muito superior aos ainda elevados 14,5% hoje praticados no período de maior dificuldade dos governos petistas.
Quem viveu nos idos de FHC sabe que a única alternativa para financiamento de ensino era o FIES. E mesmo assim era necessário oferecer muito mais do que alma como garantia financeira, o que criou uma geração de endividados, isso quando conseguiam ingressar e concluir o ensino superior, posto que a burocracia e as exigências para a concessão de um financiamento iam além da capacidade de grande parte da população.
Hoje isto não existe mais. O que define o FIES não é o interesse das instituições de crédito e a remuneração do capital, e sim os resultados da qualidade do ensino ofertado pelas instituições privadas, o que garantiu mais 1,3 milhão de estudantes no ano passado, mesmo com o ajuste fiscal do Ministro Levy.
Portanto, Lula e Dilma, ao contrário de FHC, Temer, Aécio, Alckmin e dos intelectuais golpistas, aumentaram o número de universidades públicas federais em 45%, criaram o PROUNI, e transformaram o FIES num programa de apoio ao ensino, e não em mais uma fonte de renda para os bancos e obstáculo ao acesso dos mais pobres à educação superior.
Mas tudo isto deve mudar caso as ideias de Samuel Abreu Pessoa no Ministério da Educação, ideias esta que ele não faz questão de escondê-las, como demonstra a matéria abaixo publicada no jornal Folha de São Paulo em 29 de junho de 2014. Num texto cheio de contradições, Pessoa sustenta que as universidades públicas devem cobrar mensalidades, com o seguinte argumento:
“As universidades públicas oferecem dois serviços de natureza distinta, apesar de haver complementariedade entre eles. atividade de pesquisa constitui um bem público, enquanto a atividade de ensino constitui um bem privado”.
[Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2014/06/1478158-universidade-paga.shtml, Acesso em 04/05/2016].
Pessoa descarta qualquer caráter formativo de cidadania no ensino, dando a este apenas o papel de fornecedor de mão de obra para o mercado. A única possibilidade de financiamento público por ele admitida é a pesquisa descompromissada com “maiores interesses econômicos”. Entretanto, não diz qual é esta pesquisa.
O intelectual tucano trata as universidades apenas como uma entidade de programação de cérebros para posterior ingresso no mercado, e sustenta que a cobrança de mensalidades proporcionaria “maior eficiência às instituições”. Sua base teórica, como sempre, vem dos Estados Unidos, onde se sabe que, além do esforço pessoal dos estudantes para obter boas notas, ou da demonstração de um talento extraordinário para os esportes, os pais que pretendem ver seus filhos formados em uma boa universidade devem, desde o casamento, reservar um fundo composto por parte da renda familiar, muitas vezes mais de uma hipoteca sobre o próprio imóvel de residência, quando este existe.
O ensino superior público, laico e gratuito, é um legado da Revolução Francesa. Daí se espalhou para toda a Europa. São poucos os países do capitalismo avançado que não mantém o ensino superior público e gratuito, mantido pelo estado.
Contrariando a tese de Samuel Pessoa, a conceituada editora britânica Pearson, que pública a famosa Revista Economist, por meio de pesquisa realizada no ano de 2013, afirma que o melhor ensino do mundo é o da Finlândia, onde todos, absolutamente todos, tem acesso ao ensino público, estatal e gratuito.
Diferentemente do modelo norte-americano, e seguindo a tradição nórdica, a Finlândia incentiva a colaboração, e não a competição. O resultado é o acúmulo de um capital social essencial para os excelentes resultados em termos de qualidade de vida alcançados pelo país do norte da Europa.
Entretanto, tais resultados nunca foram acolhidas por nossa elite conservadora que sempre preferiu medidas que incentivassem a exclusão social desde a escola. Mesmo que a receita neoliberal tenha fracassado em todo o mundo, e as tentativas de retorno ao modelo tenham sido ainda mais desastrosas, como nos casos da Espanha, da Grécia e da Itália, há uma insistência dos profetas do mercado financeiro em impô-lo à nossa sociedade.
Na década de sessenta, os militares, depois do golpe, fizeram um acordo com a Agência Norteamericana para o Desenvolvimento Internacional, a USAID, sigla inglesa para United States Agency for International Development, que modificou a nossa estrutura de ensino e impôs um pesado regime de autoridade que ganhou a simpatia dos golpistas, pois permitia caçar os líderes estudantis contrários ao sistema.
O objetivo inicial era privatizar o ensino, coisa que não chegou a ser implementada na prática. Contudo, matérias formativas de consciência social, como História, tiveram a sua carga horária reduzida. Filosofia, Latim e Educação Política foram extintas, e foi introduzida a triste Educação Moral e Cívica.
Os ares libertários que acompanharam a Constituição de 1988 derrubaram a tese da privatização, e o art. 206, IV, da Carta Régia diz expressamente que o ensino prestado pelas instituições públicas “deve ser gratuito”. É um direito frente ao Estado, e um princípio que deve ser respeitado.
Mesmo vencida no processo constituinte, a tese da cobrança de mensalidade retornou no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB/SP), que deu aquiescência aos acordos firmados com o FMI e o Banco Mundial em razão da dívida pública.
Em 1995, no auge do governo FHC, foi publicado o famoso documento do Banco Mundial chamado “La Ensiñanza Superior: las lecciones derivadas de la experiencia”.
No documento está expresso e in litteris:
“(…) Cada instución deberá poder estabelecer los requisitos de admisión, determinar los derechos de matrícula y otros cargos, y determinar los criterios que deben cumplirse para proporcioinar asistencia a los estudiantes necesitados, com el fin de assegurar que el número y la distribución de los estudiantes nuevos sea compatible com sus recursos. […] controlar los costos reduciendo personal docente cuando la proporción entre profesores y estudantes esté por debajo de los niveles de efiencia (…)” [transcrito do próprio documento de 1995].
Portanto, o que o grupo golpista liderado por Temer pretende não é uma novidade. É tentativa de reciclar um pensamento retrógado apenas mudando os atores envolvidos, e importado das diretrizes imperiais das grandes potencias dominantes. Para a mentalidade ultrapassada dos aventureiros ligados ao golpe, o Brasil não pode emergir como potencia intelectual e tecnologicamente desenvolvida.
Agrava-se a situação quando Temer também coloca na sua agenda a privatização da PETROBRÁS e do PRÉ-SAL, considerando que pela Lei, 75% dos recursos obtidos com os royalties da reserva petrolífera devem ser destinados para a educação. O restante para o setor de saúde. Trata-se de uma estratégia cruel, que visa desconstituir anos de lutas em prol da educação pública, gratuita e universalizada.
Se Lula e Dilma elevaram o número de universidades federais em 45%, criaram o PROUNI, o Ciência sem Fronteiras, criaram 214 novas escolas técnicas, e atenderam, só nos últimos 05 anos, 08 milhões de pessoas no PRONATEC, além da expansão das bolsas de pesquisa e de pós-graduação, Temer tenta alçar voos propondo um triste déjà vu, para o qual a única alternativa concreta é a resistência, levando ao público o significado político e social do movimento e da estratégia golpista.
https://sustentabilidadeedemocracia.wordpress.com/2016/05/05/golpistas-recolocam-privatizacao-do-ensino-na-agenda-politica/
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