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Junio 2010

Liberdade do corpo? Sim, mas não para o corpo: dilemas contemporâneos

Bárbara Nascimento Duarte*

RESUMO

Simples suporte da pessoa, objeto à disposição sobre o qual se deve trabalhar a fim de seu aperfeiçoamento, uma matéria- prima para construção do ser no mundo, o corpo na contemporaneidade é marcado por um narcisismo – por vezes às avessas - que tem gerado novos sentidos à forma como o indivíduo se constrói na sociedade. Trilhando teoricamente o discurso atual e legitimado de americanização do mundo que faz apologia à um corpo alter ego, proposto por Le Breton, discutimos sobre uma redistribuição das coações da ética puritana de salvação individual através da auto-disciplina do corpo conjugado com o progresso da tecnociência. Numa promessa messiânica de salvação pelo corpo, o caminho e a verdade, vislumbra-se que as modificações realizadas no invólucro corporal não possuem coerência em si, mas a questão é deslocada para a construção do ser-no-mundo, num constante esforço de exterioridade visando alcançar a interioridade.

1. Corpo: evidência mais concreta da existência do homem

De acordo com Csordas (1994) muito da literatura produzida sobre o estudo da corporalidade pode ser entendida como se tratando dos estudos de um “corpo analítico” devido ao enfoque dado à percepção e à prática. Percepção consiste nos sentidos, noções de sensação, a forma de se experiementar o eu através desta, encerrando-se no objeto, o corpo. Este, depois de constituído, torna-se a razão para as experiências que o indivíduo já teve e poderá ter um ponto de vista individual de um objeto do mundo (Merleau-Ponty, 2002). Quanto à prática, esta se relaciona com as noções de técnicas corporais do artigo clássico de Mauss (2003), tão bem conhecidas pela antropologia, porém cuja importância só foi reconhecida muito posteriormente após sua apresentação em 1934 diante da Sociedade de Psicologia na França.

Definidas como técnicas corporais os modos em que os homens em diferentes culturas encontraram para servir-se de seus corpos, primeiro e mais natural instrumento do homem, elas se dão por meio de gestos codificados que visam obter uma eficácia tanto prática quanto simbólica. Mauss reconhece ter cometido o erro inicial de pensar que só existiria técnica quando houvesse instrumento, e concluiu que o principal instrumento do homem em todo tempo estava preso a ele, era seu próprio corpo (2003). Tendo observado modalidades esportivas como natação, corrida, afirmou a partir daí que as técnicas corporais estavam fundadas na relação do indivíduo com o habitus cultural que tornava essas práticas além de tradicionais, eficazes.

Propôs a classificação das técnicas corporais a partir do gênero, idade, rendimento ou habilidade, e segundo as formas de transmissão, que ocorrem através da educação, da “imitação prestigiosa”, disposição nada trivial a copiar atos que alcançaram êxito no comportamento daqueles que são referência para a criança, o indivíduo. O ato é ordenado e autorizado precisamente por causa dessa “noção de prestígio da pessoa [...] em relação ao indivíduo imitador,[no qual] se encontra todo o elemento do social”, afirma o autor (Mauss, 2003: 215). Ao mesmo tempo, o antropólogo e missionário Maurice Leenhardt, famoso por expor um encontro com um mestre do discurso ritual na Nova Caledônia, que demonstrou o conhecimento de seu povo sobre a noção de espírito, apesar disso até então ignoravam a existência do corpo (Lima, 2002). Perspectiva inicialmente espantosa para “nós” tendo em vista que a posição desse mestre coloca em discussão a dicotomia tão presente e naturalizada no mundo Ocidental, a base do discurso cristão que consiste da divisão entre corpo e alma.

Além das noções que focam as relações do corpo em domínios específicos da atividade cultural, o corpo analítico de Csordas alude a estudos do corpo relacionado a traumas, gênero, religião, self, dentre outros. Mary Douglas (2007:76) por sua vez, estabeleceu uma correspondência dicotômica entre o corpo físico e o corpo social, o primeiro sempre constrangido pelo segundo, modificado por categorias sociais e que suporta uma visão particular da sociedade, sempre vivos e atualizados devido a uma troca contínua de significados entre esses dois - o corpo social e o físico. Tal como Mauss, Douglas não naturaliza nenhum comportamento humano porquanto para ela o jogo está colocado na relação entre a natureza e a cultura, esta última existindo como uma forma de apropriação do homem para expressar estilos corporais apropriados. O corpo, matéria simbólica e ao mesmo tempo objeto concreto carregado de práticas e discursos sociais, engendra constantes transformações culturais, merecendo, portanto, seu lugar próprio de estudo, não através de um enfoque até então oferecido à sua análise, pois estes consistiam simplesmente limitá-lo a um papel secundário na investigação sociológica (Le Breton, 2002).

O corpo do qual falamos não se trata de uma morada de um ser superior, local onde repousa a alma, nem mesmo o pensamento. Conquanto seja o objeto mais concreto e a evidência mais antiga da existência do homem, este assunto tem ressurgido em várias pesquisas exatamente ser locus da escrita do mundo e escapar à compreensão dado as suas dinâmicas. Objeto passível de ser pensado multidisciplinarmente nos leva a questão proposta inicialmente: de que corpo falar?

Fala-se, pois, de um corpo articulado, um corpo que learn to be affected (Latour, 2004), o que é dizer um corpo colocado em movimento devido à ação de outras entidades e afetado pelas diferenças, passível constantemente de ser alterado. Arriscar-se a fazer uma antropologia do corpo na contemporaneidade consiste em traçar um caminho que perpassa a extensão que este tem assumido na modernidade, as relações ambíguas instauradas que refletem o rol contemporâneo entre o indivíduo e a sociedade, e que nada tem a ver com a oposição entre o corpo e o espírito. Prontamente, falar sobre uma sociologia do corpo consiste em conjeturar sobre a gama de corpos que se apresentam a nós.

Pela proposta de Le Breton (2002) coloca-se de lado o corpo como uma evidência, compartilhada até então nas representações ocidentais, abordando as possibilidades existentes nessa temática que vão desde as atividades perceptivas, expressão dos sentimentos, às inscrições e condutas corporais. Vivencia-se um momento histórico no qual a sociedade tem experimentado mudanças significativas na forma como o corpo é organizado e experimentado (Csordas, 1994), onde um novo tipo de corpo, com “existência própria”, atrelado de significados, um princípio de subjetivação e individualização (Le Breton, 2002) é proposto à sociedade. Compreender como esse corpo aprende a ser afetado consiste em embrenhar-se numa forma de articulação corporal que se torna mais e mais descritível à medida que é afetado pelos diversos elementos, entidades, de modo tal a armazenar a curso do indivíduo e da sociedade, por conseguinte, tornando o indivíduo mais sensível a sua história individual e ao que é feito o mundo (Lévy, 2010).

2. Um lugar para o corpo na Modernidade

Iniciando-se de modo geral na Renascença juntamente com o desenvolvimento do Humanismo, que abriu caminhos para uma nova possibilidade dos indivíduos apreenderem e lidarem com seus corpos na contemporaneidade, a Modernidade foi um movimento que rompeu com o pensamento medieval, com o teocentrismo e com a Igreja, deu iniciou a uma nova configuração de compreensão dos homens e de suas ações, que a partir daquele momento deveriam ser orientados em todos seus comportamentos pela busca da razão, progressiva racionalização, que os guiariam aos caminhos da liberdade e felicidade. Essa história foi composta por homems de “progresso” e de “tradição”, “modernos” e “antigos”, precursora das atividades definidas como racionais, científicas, tecnológicas, administrativas, que se arraigou em diversos setores da vida social a fim de trazer o progresso técnico, a liberação das necessidades, o triunfo da razão, a diferenciação econômica e administrativa, que teve como resultado o moderno Estado capitalista- industrial (Featherstone, 1995). A modernidade foi o marco de um novo Regime, representou uma aceleração que só se viabilizou ao romper com o passado “arcaico”, “tradicional” e “estável”, assinalando, para os modernos, um combate onde estes pensam haver vencidos - o tradicionalismo – e os vencedores (Latour, 1994).

Buscando libertar o homem do dualismo cartesiano, que depreciava o valor do corpo em detrimento da alma, parte das concepções da Idade Média, livrar a sociedade do domínio dos ensinamentos da Igreja, sobretudo, do direito desta de legislar sobre a vida dos indivíduos, negou no homem a existência de Deus, ação fundamental para o avanço e permanência dos modernos. Foi imperativo afastar Deus tanto das leis da natureza bem como das leis da sociedade, concedendo-lhe uma imagem transcendente, separado do domínio dos homens, no entanto, disponível em caso de conflitos entre os dois pólos criados pelos modernos (Latour,1994). Substituindo o sujeito e Deus, a meditação sobre o valor da alma, institui-se um corpo-sujeito incumbido aos cuidados da medicina, que se dedicará à dissecação de cadáveres e estudo das sinapses do cérebro, possibilitando um novo conceito de homem. Correspondente às suas obras, o ator social se insere num pensamento dominado pela busca da liberdade e prazer, pois conquanto antes da modernidade negava-se o corpo, o trajeto oposto toma lugar com essas mudanças. A questão do corpo não era colocada individualmente na Idade Média, uma vez que os homens viviam numa comunidade hierarquizada, parte de uma grande coletividade: a Igreja. Le Breton (2008b) afirma que foi a partir do Humanismo que se deu o início do processo de rompimento, não energicamente, essa concepção de homem anexado à coletividade, o que levou a emergir as primeiras formas de individualismo, a individuação, e o corpo deixou aos poucos de ser motivo de inclusão para ser o de separação entre um indivíduo e outro.

O individualismo torna o homem como categoria dominante. A sociedade medieval não aceitava a ruptura entre o homem e seu corpo, entre o homem e o cosmos, entre o homem e o mundo, pois este era seu principal representante num mundo submergido pela transcedência cristã. Aos poucos, com a ascensão do individualismo, cujos principais defensores eram a elite intelectual, burguesia e os reformadores, o tipo de dualismo ao qual o homem é confrontado vai assumindo novas facetas. Tentando se livrar da oposição encontrada na perspectiva religiosa, surge um dualismo que é resultado do rompimento da solidariedade que unia o indivíduo à coletividade, numa versão moderna - o homem versus seu corpo. As mudanças no estatuto da pessoa, o corpo que deixa de ser envolvido pela alma e torna-se envolto pela pele, somado ao sentimento de ser um indivíduo, o corpo tornou-se a fronteira mais precisa que distinguia um homem do outro, e instaura uma nova forma dos indivíduos lidarem com as coisas e as relações sociais (Baudrillard, 1995). Com o foco na razão, no próprio homem, os valores, as orientações de vida liberaram-se das tradições do passado efetivamente, e a noção da pessoa é de vez alterada. O corpo, cá fator de individualização no novo Regime, indica a ruptura do homem com o cosmos, tornar-se um objeto de valor, notadamente para os anatomistas que dão início à dissecção de cadáveres. O Humanismo é a abertura de uma lacuna fundamental para os anatomistas inventarem o conceito de corpo com o qual nós vivemos na contemporaneidade, diz Le Breton, o que é dizer um corpo não anexado à pessoa, ao cosmos, à comunidade, sim fruto da razão, do progresso da ciência, que não possui nada além de um valor anedótico de encarnação provisória da pessoa, um amontoado de carne consagrada ao apodrecimento depois da morte (Lévy, 2010). Como durante e antes da Idade Média o homem não estava separado de seu corpo, na realidade, este não possuía um corpo, não era nem mais nem menos singular entre toda a comunidade, ao contrário, estava ligado ao cosmos, mesmo a menor intervenção que fosse realizada no nesta era proíbido, uma violação do ser humano, da criatura perfeitamente criada à imagem e semelhança de Deus.


3. Paradoxos da corporalidade: questões da modernidade

Para compreendermos como a preocupação com o corpo se espalhou pelo mundo en encontra-se disseminada na sociedade, faz-se necessário lembrar do compromisso estabelecido pela ética puritana norte-americana, baseado num reforço disciplinar, intensificação dos controles e da autodisciplina, que veio instaurar a chamada “cultura do corpo”. Após a Guerra Civil surgiu uma proposta para a sociedade americana de uma vida mais saudável, menos sedentária que gerava males à saúde e já dominavam os americanos devido à urbanização e à modernização, juntamente com a emergência das práticas esportivas, a ética puritana, disfarçada de um individualismo disciplinado, aliou a atividade física a uma educação moral, vista como necessária para a sociedade que dia após dias se industrializava.

O discurso médico se inseria nesse artifício legitimando o corpo como um processo no qual qualquer intervenção que se considerasse necessária poderia ser feita, ao mesmo tempo em que se desenvolvia o sentimento de gratificação pessoal gerado do próprio corpo disciplinado (Sant’anna, 1995). Deve-se pensar no sentido de que a “[...]utopia do corpo; a saúde perfeita solicita um corpo, senão perfeito, pelo menos glorioso, ou seja, um corpo revisto e corrigido pelas instâncias religiosas do mundo pós-moderno, isto é, aqui, os engenheiros biológicos, médicos ou pesquisadores, que encarnam a mitologia flamejante dessa virada de século”(Le Breton, 2008a: 225- 226).

O corpo com sinais de envelhecimento é estigmatizado. Percebido como um corpo gasto nega os valores exaltados da contemporaneidade que consiste na beleza, juventude, sedução, vitalidade. A sociedade que cultua a juventude e sua vitalidade não consegue aceitar o fato de envelhecer. Paradoxalmente, busca-se prolongar a vida do indivíduo através de práticas regulares de atividades físicas, alimentação adequada, atividades para a mente, a fim de se viver a “melhor idade”, já dizem os slogans. Ao passo que esse envelhecimento deve ser negado no corpo, incorrendo no risco do indivíduo ser colocado a parte da sociedade, pois a velhice remete à precariedade, denuncia a fragilidade da qual consiste a humanidade. Sem esquecer que o discurso do marketing afirma ser impensável o indivíduo, com tantos recursos ao seu entorno, no mercado, deixar que os sinais do tempo, da idade mais avançada, tornem-se visíveis no rosto e corpo (Le Breton, 2010c), bem como os excessos. Se referindo à fatalidade da natureza, o envelhecimento, Andrieu (2004:115) acredita que “ cada um encontra em si a parte das suas escolhas corporais (risco, consumo excessivo), a influência de causas exteriores (vírus, ambiente, relações) e o que é da esfera do determinismo estritamente genético. [...] Compete ao homem dar sentido a isso mesmo que parece condená-lo”. O que está em risco para as essas mulheres é a sua existência como sujeitos.

É imprescindível que o capital saúde e sedução prospere, que esse corpo alter ego propicie momentos agradáveis durante a jornada do indivíduo. Essas influências geradas e herdadas da modernidade, não é ousadia dizer, como já mencionado anteriormente sobre os valores da ética puritana que se entranharam no desenvolvimento inicial das práticas esportivas, advém de um projeto de corpo que se discute nos múltiplos ramos da ciência e biotecnologias no império americano (Le Breton, 2010b). Das utopias geradas do modelo de americanização, vivencia-se a era que se anseia por ideal corporal (que nunca se atinge), a moeda de troca para se conquistar a promessa da felicidade plena transmitada pelo body business e que incute nos indivíduos a ideologia do fracasso, já que aparentam “impotentes” diante do domínio do próprio corpo. Aprisionados pela falta de esperança no futuro, fruto da mudança de orientação da modernidade, o indivíduo é instigado a se fixar na eterna juventude e perfeição estética (Wolf, 1992), a investir na exterioridade a fim de alcançar a interioridade.

4. Corpo rascunho, por vezes acessório, por fim o outro corpo

Le Breton (2008a; 2008b) afirma que o corpo da modernidade trata-se de um corpo alter ego, uma personalidade diferente do eu, disponível para qualquer alteração, maleável de acordo com o interesse individual. O dualismo que permanece é entre o homem e seu corpo, o que encontra neste uma possibilidade de salvação, papel que antes da modernidade era conferido à alma. Na psicologia esse alter ego encontra-se no mais profundo do ser do indivíduo, a parte confiável da pessoa. Pensando o corpo dessa forma é dizer que a parte confiável do indivíduo é seu corpo, a essência, o representante do indivíduo limita-se a sua carne, ele é o responsável por definir o sujeito. Numa época em que se vivência crises de valores e referências na sociedade, onde se vive só no meio de uma multidão, o corpo vira “um outro” de uma mesma pessoa com qual é possível estabelecer relações mais prazerosas, íntimas ainda que estas relações levem este parceiro ao extremo.

Convidado a descobrir o próprio corpo, suas sensações, suas possibilidades, limites, o indivíduo encontra, pois, uma forma de transcedência pessoal, numa espécie de sócio. Ainda para o autor o corpo muda seu status e toma o lugar da pessoa, visto como é “a perda da carne do mundo o que empurra o sujeito a preocupar-se com seu corpo e dar carne a sua existência[...] no imaginário social o discurso é revelador: frequentemente, a palavra corpo funciona como um sinônimo de sujeito, pessoa” (Le Breton, 2008b). Cotidianamente, quando se observa alguém caminhando na rua, não se diz “ali vai um corpo”, “ali está um corpo”, dizemos que “ali vai uma pessoa”, “ali vai alguém”, já que para nós facilmente relacionamos o indivíduo ao seu corpo, não o percebemos separadamente. É, ao mesmo tempo, corpo objeto e corpo sujeito, responsável pelo destino do indivíduo, pessoa completa e tanto quanto espelho é dizer um alter ego.

Podendo ser desagregado da pessoa, o corpo será reputado em partes isoladas que podem ser substituídas por necessidades terapêuticas ou por proveito pessoal. Espera-se que pelo trabalho da corporalidade o caráter do indivíduo seja alterado, que seus dilemas pessoais, seu mal-estar diante da sociedade, sejam solucionados. Pelo trabalho do físico, pelas intervenções da medicina, com os excessos, o indivíduo espera ter seu destino e sua essência transformados, “Fui me sentindo mais empolgada com a minha capacidade de controlar a vida e o corpo”, visto que em busca da perfeição estética o corpo natural é “o grande vilão”, por último diz a edição da revista. Tendo em vista que indivíduo moderno é convocado a estar no comando do próprio corpo, não faltam orientações para que este se adeque às demandas da sociedade, nos dizeres de Wolf, “a beleza é o paraíso ou um estado de graça; a pele ou a contagem de células adiposas é a alma; a feiúra é o inferno” (1992: 128).

Consistindo numa realidade em si, o corpo nesse jogo é refém de qualquer ato validado pelo saber médico, científico e popular, salvo poucas objeções, para que sua ostentação se dê da melhor maneira possível. Na égide do domínio de si, da identidade híbrida, da desvalorização do estático, toda obra é correta para diferenciar o novo corpo do corpo criado pela natureza, aliás, este perdeu todo seu valor, sustenta Andrieu (2008). Quando se fala de culto ao corpo, deve-se ter em mente que não se trata da adoração do corpo em seu estado de natureza. A glória do momento é atribuída ao corpo não natural, conjunto de órgãos anexados à pessoa, instância de conexão com o mundo, o corpo-descartável em constante busca de manipulação de si e ansiedade de afirmação pessoal, já que o corpo sem intervenção é desprestigiado, “encarna a parte ruim, o rascunho a ser corrigido” (Le Breton, 2008a:17). Nas palavras de Courtine sobre as origens do culto ao corpo “[este] vai, desde então, desempenhar um papel essencial no imaginário americano de promoção individual” (Sant’anna, 1995: 98). Na era da “liberação do corpo” enfatiza-se que não é qualquer corpo que está livre para se apresentar sem olhares de condenação ou reprovação. São os corpos jovens, saudáveis, magros, malhados, condenando os se apresentam de forma antagônica, símbolo de descuido e falta de domínio de si. Como disse Andrieu, no paradoxo do corpo descobrimos que a liberação do corpo não consiste em uma liberação para o corpo.

O corpo da contemporaneidade é encarado como um em si mesmo, desprendido do sujeito, de sua individualidade, personalidade. Alter ego, sócio, rascunho, objeto que pode ser manipulado, retocado, alterado, sem limitações.Não é a identidade absoluta do indivíduo, ao contrário, é um corpo fragmentado que será o auxílio para a definição do eu. Pode ser um corpo maldito ou um corpo salvador, que a medida que perde seu valor moral aumenta seu valor comercial, valor altíssimo. Tratamos na modernidade de um homem “reduzido ao corpo, o corpo convertido em um instrumento, sem faltas, o corpo reprimido volta de uma maneira ou de outra. O espessor humano segue presente, ainda que seja como enfermidade, como depressão, como cansaço ou como acidente, ou simplesmente como o inesperado” (Le Breton, 2008b:239). Na dualidade corpo-sujeito, bem diz Le Breton (2008a, 2008b), atuar sobre uma das partes gera consequências sobre a outra, apenas lembrar que o corpo alter ego também pode ser entendido como um espelho. Os indivíduos então percebem seus corpos como uma arena onde todas as possibilidades de seu imaginário tornam-se possíveis, e a despeito da genética, a questão corporal aparenta depender mais das alterações feitas individualmente e pelo estilo de vida. A possibilidade de transformar a essência do homem numa consequência do trabalho sobre seu corpo desencadeia uma fantasia no imaginário social que leva os indivíduos a pensarem que uma massagem, meditação, cirurgia, controle dietético, entre incontáveis outras opções disponibilidades comercialmente, podem modificar a existência do sujeito.

Diria-se que as ambições da modernidade não são modestas: mudar de corpo para mudar o rumo da vida. Nesse sentido, este corpo fragmentado deve ser manipulado, ainda mais quando estas partes são vistas como elementos errados, inadequados para a existência plena em sociedade. Não se trata só de transformar o físico, mas de um destino que está, literalmente, aos cuidados de cada um. E na busca desenfreada pela felicidade muitos sacrifícios são legitimados para que o sucesso, a alegria, o bom emprego, o bom casamento sejam conquistados. E o corpo é o caminho. Pensando que ao modificar o olhar sobre si alterará o olhar dos outros, de forma a viver plenamente, o indivíduo contemporâneo visa minimizar o desvio experimentado entre si e si, pois crê que ao mudar o corpo mudará radicalmente sua própria vida, sua identidade e seu destino.

Cultivar o corpo como meio de expressão e identidade, e dependendo das condições materiais aptos para criar disposições corporais distintas, o que é dizer que alguns grupos estarão mais inclinados e melhor equipados para dar conta dos investimentos necessários na produção pessoal, o que não é dizer que somente estes conseguirão dar conta do projeto do corpo já que os recursos para tal estão disponíveis a todos de formas distintas (Gimlin, 2006). A dimensão que o culto ao corpo tem adquirido no Ocidente encontra na cirurgia estética um procedimento capaz de reinforçar a ênfase na atração física e integrar o indivíduo aos outros (Negrin, 2002). A cirurgia estética não modifica somente a aparência, em sua maioria de mulheres, bem que esta seja cada vez mais aceitável entre os homens e em crescimento (Davis, 2002), acarreta transformações na subjetividade individual propiciando condições para mudanças repentinas na forma do indivíduo se relacionar consigo e com o mundo exterior simbolicamente.

Sendo consentido de obter o corpo desejado devido às opções sustentadas pela medicina moderna, tem a capacidade de ajudar a reafirmar a autonomia individual em sua construção pessoal com rapidez dos resultados. A cirurgia estética, por se situar numa ampla gama de procedimentos médicos oriundos do avanço da tecnologia, práticas e discursos - tanto publicitários quanto médicos - que definem o corpo feminino como deficiente e em necessidade de transformação/atualização contínua (Davis, 2002; Negrin, 2002; Goldenberg, 2007a) revolveu-se parte do discurso do design corporal, ocasionando o “sentimento de que a soberania relativa da consciência do indivíduo [que] deve se estender igualmente à sua aparência e não deixar a carne inculta [...]. O corpo tornou-se a prótese de um eu eternamente em busca de uma encarnação provisória para garantir um vestígio significativo de si” (Le Breton, 2008a:29).

A garantia da existência do homem é um rascunho, exprime Le Breton. Tanto o corpo natural quanto o social fazem parte do processo de criação individual. A identidade híbrida que caminha aos passos do avanço técno-científico proporciona a salvação para o corpo natural imperfeito demais para continuar existindo (Andrieu, 2008; Le Breton, 2008a). É um corpo reescrito, caracterizado por sua “subjetividade lixo”, diz Le Breton, que existe numa época em que a pele, a carne, manifesta o que há de mais profundo no indivíduo, que exprime quem é o sujeito. Por isso, abre-se cada vez mais espaço para que práticas relativamente recentes e dependentes do avanço da tecnologia atuem eficazmente para a reconstrução dessa máquina corporal, defeituosa por natureza e que pode ser aperfeiçoada devido ao progresso tecnológico. Ao mesmo tempo é um corpo acessório da presença, de valor secundário em si mesmo, palco para o espetáculo, artigo de adorno do sujeito, aberto a todo tipo de investimento que variará de acordo com os ideais almejados. Tudo é feito em nome da estética da presença (Le Breton, 2008a). A modificação do corpo alter ego visa alcançar a representação de si mais adequada, reduzindo o corpo a mais um elemento material da presença do homem. Tudo o que for percebido no corpo como um empecilho à transformação plena do indivíduo deve ser retificado da forma mais rápida possível, há a urgência dos resultados.

O corpo não é somente o signo dado do ser-no-mundo, da presença humana, uno com o homem como apregoava a fenomenologia de Merleau- Ponty (2008). Le Breton nos mostra que agora o corpo é também a construção do ser- no- mundo, a possibilidade do indivíduo criar e aderir ao seu eu, colocando-se fora de si para se estabelecer o self. O corpo, criação de uma natureza simplória, possui novas possibilidades de salvação perante os progressos da modernidade. Ao homem, melhor dito, ao corpo resta aceitar o triunfo tecnológico e da ciência. A questão central da modernidade é a distinção de, por um lado, o homem e, por outro, seu corpo. A fragilidade e imperfeição deste último, seu uso provisório e limítrofe, o dualismo moderno “não opõe mais o corpo ao espírito ou à alma, porém, mais precisamente ao próprio sujeito” (Le Breton, 2008a, p.28).

Após tantas crises ideológicas que afetaram o indivíduo, sobretudo os da geração dos anos 80, este se depara sem referências, seu sentimento de inutilidade social amplia e é no próprio corpo onde descobrirá o lugar para definir sua identidade, chegando-se ao ponto em que este corpo só possui direitos, conceituado por Andrieu (2008) como o hyper-individualisme, cuja característica é a adequação do modelo fornecido pelo capitalismo onde o indivíduo possui a lógica do auto servir-se de acordo com as opções e seu interesse, enveredado pela lógica das aparências, uma constituição inédita do indivíduo, marca de uma sociedade que privilegia a distância como forma de interação. Neste corpo identitário, contudo ainda imperfeito, vislumbra-se a fragilidade e as precariedades da humanidade.

Resta a essas iniciativas inéditas, sobretudo às relacionadas à tecnociência, a se empenharem em eliminar ou corrigir o que consideram como “imperfeições” do corpo humano. Como o corpo não é mais o sujeito e o dualismo não está inscrito mais na metafísica, “mas decide sobre o concreto da existência e funciona como uma paradgima da ação médica, então tudo é permitido. O corpo é um jogo de armar, suscetível a todos os arranjos de combinações insólitas com os outros corpos, ou a experimentações surpreendentes” (Sant’anna, 1995, p.61), este encontra-se aberto à maleabilidade do que é percebido como totalmente seu, locus de escrita do discurso que o indivíduo deseja reportar ao mundo, trata- se de uma “ilusão corporal” (Andrieu, 2004, 2008).

Tratamos na modernidade de um homem reduzido ao corpo, o corpo convertido em um instrumento, sem faltas, o corpo reprimido volta de uma maneira ou de outra. E é deste corpo que tratamos nesse trabalho, o corpo ao mesmo tempo liberado e cativo, que diz conferir aos indívíduos total autonomia de ação mas contrange este para que opte por aderir a normas rígidas de adequação corporal, de forma não tão autônoma ou por prazer individual, mas a partir da coerção, da condenação a tudo que se aparente com descuido e relaxamento das formas corporais. Corpo que vivencia um momento de invenção, experimentação, de novas possibilidades e reflete mais um paradoxo moderno - a liberdade controlada- para Le Breton (2008a, 2008b), frequentemente numa via de mão dupla: quando é alterado altera-se a moralidade do indivíduo.

Considerações finais

Como tentamos demonstrar, as normas que regem a sociedade Ocidental responsabiliza cada indivíduo por seu corpo, que pode refletir um abandono moral do corpo –sujeito, que repercute na produção do seu eu. Consciente de si mesmo e de suas fronteiras corporais o individualismo suporta o corpo como valor último do indivíduo e também seu refúgio. Portanto,este é necessário para compartilhar os signos sociais, proporcionando o conforto, a segurança e certezas num mundo onde a incerteza e falta de sentido imperam, já disse Le Breton, e onde as instituições sociais tradicionais perderam sua eficácia. O corpo é o único caminho para o sujeito. Assim, formas inéditas de socialização surgem e colocam o corpo como lugar de discurso privilegiado que carrega signos efêmeros, levando o indivíduo tentar se desenvolver intimamente através da construção do seu exterior e do descobrimento de novas sensações.

O rompimento de referências sociais elementares que se deu como forma de ruptura com o passado medieval e instauração da modernidade, e a falta de investimento social em novos referênciais que pode trazer sentido à vida do homem, o orienta a uma busca para reduzir as incertezas do viver, fez com que os indovíduos aproximaxem os limites simbólicos ao máximo para si, a única certeza que estes podiam ter. Posicionando os limites para o físico devido à falta de fornecimento dos limites morais pela sociedade, em decorrência, as fronteiras que o indivíduo necessita para estabelecer sua identidade são as mesmas que estabelece através do corpo, numa condução para si mesmo, um projeto reflexivo, sobre o qual constantemente trabalhamos conscientemente ou não, uma questão inescapável na modernidade.

Juntamente com o desenvolvimento da tecnociência, mais interferências na existência individual surgem exigindo respostas do sujeito. Não somente, cria o sentimento de uma identidade menos estável, permanecendo as incertezas do corpo e como controlá-lo, desestabilizando o mundo do indivíduo. Uma verdade que permanece é que quanto maior o conhecimento sobre o corpo, maiores as incertezas de como lidar com este. É indispensável nos atentarmos à essas alterações na realidade social que não fazem parte do passado, da imaginação dos visionários, nem se inserem somente nos debates da área da saúde ou nas tecnociências. Estes movimentos gerados com o avanço da ciência têm alterado a forma como os indivíduos pensam e vivenciam a realidade, apontando para novas tendências e muitas novas incertezas.

Finalmente, foi deste corpo que tratamos nesse trabalho, o corpo liberado que diz conferir aos indívíduos total autonomia de ação ao mesmo tempo em que orienta para que estes optem por aderir a normas rígidas de adequação corporal, de forma não tão autônoma ou por prazer individual, mas a partir de uma coerção disfarçada, uma ética puritana do esforço, da disciplina, do controle pessoal e da condenação a tudo que se aparente com descuido e relaxamento, aqui das formas corporais. É mais um paradoxo moderno - a liberdade controlada , disse Le Breton. E um questionamento permanece: até onde o corpo irá para orientar a existência dos sujeitos?

Notas

* Bárbara Nascimento Duarte*

Mestranda, financiada pela CAPES, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. barbara.duarte@ufjf.edu.br. Artigo enviado em 11 de maio de 2010.

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